problematica DaVinci - consulta 1
Hipoteticamente falando:
O que a traz aqui Ana? Pergunta ela de aspecto normal sentada numa cadeira de aspecto normal, sorriso de aspecto normal, circunspecto, vazio, pouco interessado… o normal.
Acho que tenho problemas… digo eu, na esperança de que a aceitação tragam uns pontos na clarividência da minha normalidade. Olho à volta, constato que não era nada daquilo que imaginaria: uns quadros, uma chez-longue confortável, uma terapia hipnotizante… Portugal é mesmo pequenino, até nas salas de chuto emocional.
Que problemas? Insistia ela…
- O meu pai morreu.
Estou a fazer-me difícil, normalmente falo de tudo, é uma espécie de sedução… é estúpido achar que tenho que seduzir até a merda da gaja que me cura estes ímpetos histéricos contraproducentes…
- Sim…
Sim? Que raio de resposta… ok! Vou mudar de assunto – Tenho problemas emocionais antes disso... – Boa, ela vai perguntar que assuntos emocionais.
- Conte-me lá… revirando-se na cadeira como se isso fosse iniciar outro capítulo de interesse, apesar de saber que no final ela dirá (com os olhos): isso é um problema na relação paternal que está seriamente dimensionada pelo recente factor de abandono.
Tudo bem eu brinco a isso também – a minha irmã diz que eu tenho a problemática DaVinci na minha vida só que é de foro emocional – jackpot na introdução de mais um elemento familiar de referência.
- O que é que isso quer dizer? - Ela diz isso como se não tivesse percebido. DaVinci não conseguia terminar projectos, não sabia comprometer-se, logo eu não concluía nada do que me propunha, nem me envolvia profundamente em nada.
Não quero parecer arrogante, mas explico, a bom termo de uma relação profícua e não sei mais o quê…
- Não consigo comprometer-me emocionalmente com ninguém. Quando começa a tocar esse ponto, arranjo normalmente uma maneira subtil de me afastar e dizer: Não obrigado, já tenho! Tipo panfleto que se distribui sob o pretexto de nos levar de a a b e que ninguém lê, principalmente se for pintado de cores berrantes tipo o amarelo e o cor-de-rosa com letras garrafais a preto.
Acabei de dizer textualmente isto, na esperança de que me achasse piada – tudo em prol da relação!
Ela volta a mexer-se na cadeira, vê-se que está desconfortável – não comigo, não me achou muita piada, mostra que as meias não condizem nada com as calças, isso chateia-me. As meias e o facto de não ter achado piada. Agora vai falar como se eu fosse um ficheiro clínico cadastrado e vai apontar que as piadas são um subterfúgio para coisas que me deixam verdadeiramente desconfortáveis – o que me parece óbvio caso contrário não as mencionava.
Ela é feia. Tem um cabelo frisado cheio de volume pintado. Combinação terrível acrescento.
50 Minutos e pausa – pausa – obrigado – corredor – senhora simpática – cheque – recibo – até para a semana.
Hipoteticamente falando, claro
Esta seria a minha primeira consulta, se a tivesse tido.
Ana